quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

DIA 24 DE FEVEREIRO DE 2015


O ANJO AZUL (1930)

“Não sou uma actriz, sou uma personalidade”- disse Marlène um dia. Uma personalidade, é certo, e mais: um mito. Mito-mulher, mulher-mito de uma geração que foi a dos nossos pais. Mito-mulher, mulher-mito de todos nós que que a descobrimos feita Anjo Azul descido à cidade para desespero dos homens. Marlène é mais do que um nome. É uma lenda. Lenda que não consegue ultrapassar a realidade porque Marlène perdura para além da lenda que a não consegue totalmente abarcar. “No Oeste, quando a lenda ultrapassa a realidade, nós imprimimos a lenda”: afirma-se no final de “O Homem que Matou Liberty Valance”, de John Ford. Que fazer, porém, quando a própria realidade ultrapassa a sua lenda? Que fazer quando as palavras se mostram absolutamente impotentes para transmitir o que quer que seja que vá além de uma simples aproximação? Já Robert Benayount (na revista Positif) pusera idêntica questão: “Ela ultrapassa a obra de arte, por muito genial que a obra seja e que se queira, a escolha e interpretação da verdade. Ela ultrapassa até o próprio mito, sem se distanciar, sem o pôr em questão. Porque essa mulher verdadeira, apesar do mito, vale sempre mais do que o próprio mito.”


Marlène nasceu em Berlin, a 27 de Dezembro de 1901. O nome de baptismo: Maria Magdalena Dietrich von Losch. Filha de um oficial de cavalaria e de uma pianista, foi educada segundo uma disciplina monacal que a levou a resguardar no seu íntimo a vitalidade e a alegria de viver que a sua personalidade desde logo denunciaram. Conta-se até que a mãe a obrigava a sair de casa nos dias mais frios do inóspito inverno nórdico, levando-a a suportar estoicamente as maiores privações, da fome à sede, a fim de lentamente a “despojar de todos os sintomas de angústia e descontentamento que uma educação menos rígida poderia favorecer”. Os estudos secundários fê-los em Weimar, e durante algum tempo dedicou-se ao piano e ao violino (onde poderia ter sido uma virtuose, se não fora a existência de “um gânglio no nervo primário do pulso esquerdo”), recebendo ainda lições de dança, equitação e línguas estrangeiras. Antes de se estrear no teatro, frequentou o curso de Arte Dramática de Max Reinhardt, célebre encenador alemão de inícios do século XX, que revolucionou profundamente a estrutura cénica do teatro, com uma estética de base expressionista. No que respeita aos intérpretes, Max Reinhardt era um director experiente e exigente que deve certamente ter tido alguma influência na formação artística de Marlène Dietrich.
Quando Josef von Sternberg a descobre numa revista por ele considerada medíocre (“Zwei Kravatten”) já Marlène (então casada com o argumentista e produtor Rudolph Sieber, de quem teve uma filha) ostentava o corpo miraculosamente desenhado que Sternberg saberia realçar, encobrindo-o com véus diáfanos e plumas, possuindo também aquele rosto de volumes admiravelmente conjugados que lhe avivavam o mistério inefável de uma sensualidade simultaneamente serena e obsessiva. A sua carreira profissional fora, até aí, pouco promissora. Repartira o tempo entre operetas medíocres, espectáculos de music-hall de terceira ordem ou pequenos e insignificantes papéis em filmes que nunca deram a medida aproximada do seu talento. Apesar disso, porém, Marlène fora dirigida por cineastas de incontroversa importância como C.W.Pabst (“Die Freudlose Gasse”), William Dieterle (“Menschen am Weg”), Joe May (“DieTragodie der Liebe”), Alexander Korda (“Eine du Barry von Heute”), Arthur Robinson (“Manon Lescaut”), Maurice Tourneur (“Das Schiff der Verlorenen Menschen”) ou Kurt Bernhardt (“Dia Frau Nach der Man Sich Sehnt”).


A revelação de Marlène Dietrich será, entretanto, obra do sexto sentido de um homem que soube olhar para lá das aparências, descortinar o essencial de uma personalidade estranhamente rica e fascinante. Uma das poucas mulheres que poderiam ser Lola-Lola e cantar o tema de “O Anjo Azul”: “Ich bin von Kopt bis fuss auf Liebe eingestellt” (“Sou toda amor, da cabeça aos pés”). Marlène teve consciência da importância decisiva do seu encontro com Josef von Sternberg e nunca se cansou de o repetir para que a quis ouvir: “Foi Sternberg quem me descobriu quando eu não era ninguém. Acreditou em mim, fez-me trabalhar, deu-me todo o seu saber, a sua experiência, a sua energia e construiu desta maneira o meu triunfo”. Ou ainda, a famosa dedicatória a Von de uma fotografia sua: “Sem ti não seria ninguém”. A isto responde Sternberg do alto do seu orgulho e do seu incomensurável talento: “Marlène não é Marlène, Marlène sou eu!” Mas quem era este Pigmalião consciente e autorizado?


Josef von Sterberg, vienense por nascimento (29 de Maio de 1894), repartiu a sua juventude entre a Áustria e os Estados Unidos. Em 1911 começa a trabalhar no cinema, numa firma de expedição de filmes, graças à qual encontra William A. Brady, que o transforma em seu assistente pessoal. Depois da guerra de 1914-1918, é Émile Chautard quem lhe assegura largos anos de experiência como seu assistente. Por volta de 1924, começa a solicitar a vários produtores que lhe permitam assinar a sua primeira realização, o que consegue nesse mesmo ano pela mão do actor George K. Arthur, que lhe dá uma oportunidade. Este foi o seu filme de estreia: “Salvation Hunters”. A película entusiasma muito boa gente, entre os quais se contam Chaplin e Mary Pickford, que o contratam para a Allied Artists. As excentricidades de Sternberg preocuparam, porém, os patronos da A.A. e será a Metro quem lhe irá propor nova obra. Aí dirigirá duas películas que outros mais dóceis acabarão por ele: “The Exquisite Sinner” e “The Masked Birde” (1925). No ano seguinte, Chaplin volta a interessar-se por Sternberg. Confiar-lhe-á um projecto ambicioso que se destinava a fazer perdurar a glória de Edna Purviance. Mas Sternberg faz de “The Sea Gull” outra obra maldita. De tal forma que raros foram os eleitos que conseguiram assistir à única exibição deste filme que os produtores resolveram arquivar. Foi assim que, em 1926, Sternberg se encontrou arruinado e perseguido numa Hollywood cada vez mais hostil. Depois de uma viagem a Inglaterra, regressará sob contrato da Paramount. Com um argumento violento e inovador de Ben Hecht, inspirado no gangsterismo americano, Sternberg dirige, em 1927, o filme que lhe abre finalmente as portas do êxito e o leva a ser considerado um dos “dez melhores realizadores americanos do ano”: “Underworld”. O filme valeu um Oscar a Ben Hecht e ofereceu a Sternberg numerosas propostas, entre as quais “The Case of Lena Smith” (1929). Emil Jannings, que trabalhara com ele em “The Last Comand”, pede-lhe por seu turno que o volte a dirigir no primeiro filme sonoro. Foi assim que Sternberg escolheu o romance de Heinrich Mann (irmão de Thomas Mann): “Professor Unrat”, para adaptar ao cinema e que estaria na base de “O Anjo Azul”. Em 1929, portanto, Josef von Sternberg encontra-se em Berlin e aí irá iniciar a escolha de uma actriz para um papel por si idealizado: Lola-Lola, a mulher destruidora que arrastará até à mais completa degradação um velho e austero professor, intolerante e severo, que por ela se deixa prender, viajando ao “fundo da noite” ou “descendo ao inferno” do desespero e da traição.
Duas personalidades invulgares irão encontrar-se por força do destino. Esse encontro, visualizado em “O Anjo Azul”, será simultaneamente o deflagrar de uma paixão impetuosa. Mas, como se terá passado na realidade nos bastidores? Isso mesmo nos conta o próprio Josef von Sternberg em páginas das suas memórias (“Fun in a Chinese Laundry”):
“O livro de Heinrich Mann descreve brilhantemente a mulher amoral, cujos atractivos conduziram à perdição de um professor de liceu. Os meus colaboradores disseram-me que a história era autobiográfica. Fosse o que fosse, o certo é que me apresentaram uma madura e muito digna senhora alemã que se considerava a sedutora apropriada para o papel da excitante prostituta. Mas a maior parte das que desfilaram frente aos meus olhos nunca poderiam ser Circe, a não ser para um grupo de cegos. Enquanto ditava o meu guião, uma procissão de formosas mulheres chegava até mim para revelar os seus encantos, que teriam sido bem mais desejáveis se se tivessem reunido todos numa mesma mulher. Uma rapariga tinha os olhos que faziam falta, outra os movimentos graciosos, outra as pernas formosas, outras ainda uma voz que prometia demoníacos prazeres, mas eu não encontrava maneira de fazer interpretar uma só personagem por meia dúzia de mulheres distintas.
“( ... ) Prestes a iniciar a rodagem, surgiu um certo mal-estar. Corria a notícia de que eu procurava uma mulher inexistente. Folheando um álbum publicitário com o retrato de todas as actrizes alemãs, detive-me sobre o rosto inexpressivo e pouco interessante da senhora Dietrich e, dirigindo-me ao meu ajudante, como fizera em tantos casos semelhantes, vi-o levantar os ombros, enquanto murmurava: “Der Popo ist Nicht schlecht, abers brauchen wir nicht auch ein Gesicht?” (“O trazeiro não está mal, mas não precisamos também de uma cara?”). A actriz foi, portanto, imediatamente relegada como tantas outras e esquecida até ao momento em que, pela maior das casualidades, fui ver uma obra de Georg Kaiser, intitulada “Zwei Kravaten”, interpretada por dois actores do meu elenco: Hans Albers e Rosa Valetti.

“(...) Quando “miss” Dietrich entrou no meu escritório, ao fim da tarde, não fez o menor esforço para despertar o meu interesse. Sentou-se a um canto do divã que se encontrava à minha frente e baixou os olhos: a apatia feita mulher.
“Vestida com um tailleur de Inverno, chapéu, luvas e muitas peles, tinha o ar de vir ver-me para gozar de um descanso bem merecido. Para a fazer sair da sua letargia, perguntei-lhe porque é que a sua reputação de actriz era tão pouco conhecida. Ela olhou longamente as mãos enluvadas e, bruscamente, como se as tivesse mostrado muito tempo, escondeu-as atrás das costas. Decididamente, pensei, iria ser muito difícil transformar em “devoradora de homens” a mulher acanhada que estava à minha frente!
“Embebido nos meus pensamentos, mal me apercebi da entrada de Eric Pommer acompanhado por um Jannings esgotado; com um a-propósito extraordinário ele pediu a Marlène que tirasse o chapéu e que desse uma volta pela sala. Era a cerimónia habitual que, embora não permitisse julgar uma actriz, mostrava-nos se era calva ou aleijada. Ela obedeceu, passeou para aqui e ali, com um ar de servil obediência, sem olhar para a frente e dando a impressão que, de um momento para o outro, se iria desequilibrar e encostar a um móvel. Os seus olhos estavam quase completamente fechados.
“Os dois peritos trocaram olhares bastante eloquentes, Pommer agarrava-se à garganta e Jannings coçava a orelha, e depois deixaram o quarto após dois apertos de mão propositadamente desnecessários, de significado bem visível. Jannings informou-me depois que os olhos de uma vaca só se fecham na altura do nascimento de um vitelo. Esta não foi a única expressão desagradável que teria de ouvir, pois, nessa mesma noite, muitos dos meus colaboradores, alarmados, precipitaram-se para o teatro para verificar a minha escolha. E voltaram a dizer-me que não tinham visto naquela rapariga nada que merecesse ser olhado: disseram, “amigavelmente”, que na véspera a devia ter visto totalmente “modificada”.
“Depois de o produtor e Jannings terem pronunciado aquele veredicto mudo, Marlène Dietrich ficou de pé, braços pendentes. Logicamente, ela não esperava outra coisa, mas olhou longamente a porta que se fechava atrás deles e depois voltou o seu olhar triste para mim, como se eu fosse o autor daquela humilhação. Pedi-lhe que se sentasse de novo e voltei a estudá-la. Sem sombra de dúvida, ela possuía uma fonte abundante de vitalidade, mas como não sabia o que fazer dela procurava dissimulá-la. Pensei então que era minha obrigação dizer-lhe o que esperava dela, o que a despertou apenas o suficiente para me responder numa voz infantil que pensava que se tratava de um pequeno papel e nunca o de actriz principal. Tentei acalmá-la, dizendo que ela correspondia perfeitamente à ideia que eu fazia da minha heroína. Mas, em vez de ficar sossegada, ela saiu por fim da casca e gritou indignada que era incapaz de brincar, que nunca a tinham fotografado como queria, que tinha sido sempre desprezada pela imprensa e que até ali tinha apenas entrado em dois ou três filmes onde estava francamente mal. Estas palavras surpreenderam-me: era a primeira vez que um actor a quem eu oferecia um papel me confessava os seus fracassos”.
“O Anjo Azul”, datado de 1930, marca pois a convergência de duas carreiras, para além de assinalar igualmente o encontro com um outro actor admirável, esse Emil Jannings a que o cinema alemão das décadas de 20 e 30 ficou a dever algumas das suas criações mais notáveis.


“Der Blauen Engel” gira fundamentalmente em redor de duas figuras (o professor lmmanuel Rath e a cantora Lola-Lola). Turista chamado à pressa para a Alemanha, Josef von Sternberg soube assimilar o expressionismo que vincou o cinema germânico da década de 20, optando, porém, por uma narrativa de forte pendor realista que se ia encontrar também na trajectória de um cinema de análise do comportamento psicológico de pequenos agregados humanos (o Kammerspiel). Apesar desta tendência para reduzir o filme às relações de lmmanuel Rath-Lola-Lola, “O Anjo Azul” vale também pelas anotações de carácter social que definem uma época e uma sociedade. Sobre esse fundo esboçado a traços largos mas incisivos, recorta-se uma figura de mulher obsessiva e sensual. Lola-Lola representa a transgressão intolerável num meio conservador e puritano. Para casar com ela, lmmanuel Rath terá de abandonar a carreira de professor, obrigado pelos colegas que o repudiam e pelos alunos que podem, finalmente, exteriorizar todo o rancor armazenado ao longo de anos de injustiças e intolerância. Exilado da sua terra, Rath passará a acompanhar a “troupe”. Os anos passam, as dificuldades avolumam-se e Rath vai percorrendo os degraus da degradação. Venderá retratos da mulher por entre as mesas de “cabarets” baratos e acabará por regressar à sua cidade natal, onde, frente a uma plateia enraivecida, desempenhará o seu último papel de “clown”, enquanto Lola-Lola o atraiçoa nos bastidores com um malabarista recém-aparecido. Consciente da sua total agonia, Rath deixa o Anjo Azul e procurará o seu antigo liceu, em que irá morrer sobre o tampo da secretária onde, anos atrás, ensinara Hamlet e vira pela primeira vez fotografias “proibidas” de uma cantora de “cabaret” de nome Lola-Lola.


“O Anjo Azul”, pensado inicialmente para glória de Jannings, acaba por ser o filme revelação de uma actriz que cedo se transformaria na mais extraordinária diva da história do cinema. Obra de um barroquismo desenfreado, serviria também para confirmação de um outro talento: Sternberg. Ver Marlène num palco miniatura, inundada de anjos e pombas de papelão, com nuvens de cartolina que lentamente deslizam por fios manobrados dos bastidores é espectáculo que para sempre perdurará nos olhos de quem viu “O Anjo Azul”. Retrato inesquecível de uma Marlène de movimentos nervosos e de poderosa vitalidade que a América (para onde partiu, juntamente com Sternberg, ambos contratados pela Paramount, pela mão de Zukor) haveria de decantar, sofisticando e aristocratizando um temperamento naturalmente impulsivo e generoso. Sobre isso, Marlène disse: “O Anjo Azul” fez-se e desfez-me. Quando Josef von Sternberg me chamou, a minha ambição era interpretar a Margarida do Fausto. O papel de uma vulgar cantora de “cabaret” vexou-me e criou uma imagem errónea de mim. A partir daí fui sempre tratada como uma cortesã de alto preço, uma mulher fatal. Bem supliquei para me darem outros papéis, qualquer coisa de mais humano e mais humorístico, mas os produtores diziam que o que público queria era ver-me somente como a mulher que põe os homens loucos. Mais tarde, a partir de “Destry Rides Again”, tive enfim oportunidade de parodiar a imagem que de mim própria fizeram, contra minha vontade.” A lucidez destas afirmações não lhe permitiu, todavia, distinguir algo de essencial que fazia de “O Anjo Azul” uma excepção na sua carreira. Será a sua colega Louise Brooks quem o fará, ao evocar a figura de Lola-Lola. “Os fiéis admiradores de Marlène continuam a afirmar que a sua metamorfose, de Dietrich em deusa hollywoodesca sofisticada, foi a grande “chance” da sua vida. Mas, cada vez que vejo “O Anjo Azul”, choro um pouco (...) Na nova Dietrich, tão refinada, já não há qualquer vestígio de feliz vulgaridade ou de generosa impulsividade. Os seus movimentos brutais e dinâmicos atenuaram-se até esse deambular majestoso que ela ostenta entre duas sessões de poses fotográficas”.

Em 1935, depois de êxitos clamorosos e algumas incompreensões nessa carreira a duo que ficou marcada por filmes como “Morocco” (30), “Dishonore” (31), “Changai Express” (32), “Song of Songs” (33) e “The Scarlet Empress” (34), e depois do fracasso final de “The Devil is a Woman”, MarIene e Sternberg rompem a sua ligação indo cada um por seu lado, à procura de um ideal perdido: Sternberg tenta fazer de cada nova vedeta uma nova MarIene; Dietrich, por seu turno, só muito tardiamente conseguirá libertar-se do retrato que dela impunham os produtores e que o público não se cansava de reclamar.
Essa Marlène de olhar voluptuoso, a meio caminho entre a mítica pureza de uma deusa inacessível e a diabólica presença inquietante de uma mulher destruidora; essa Marlène regressada do reino das sombras e das trevas, esse rosto iluminado, que permanece misterioso para além de toda a descoberta; essa Marlène de tempos idos, mulher-mito, mito-mulher, continua bem junto de todos nós. Cada reposição de uma obra sua, na televisão, mas sobretudo nas salas de cinema, é uma oportunidade nova que, sobretudo, as gerações mais jovens não podem desconhecer e que os mais velhos recordam com saudade.
In “O Século Ilustrado” (20 de Dezembro de 1969)

O ANJO AZUL
Título original: Der Blaue Engel
Realização: Josef von Sternberg (Alemanha, 1930); Argumento: Carl Zuckmayer, Karl Vollmöller, Robert Liebmann, (Josef von Sternberg),  segundo romance de Heinrich Mann ("Professor Unrat"); Produção: Erich Pommer; Música: Franz Waxman; Fotografia (p/b): Günther Rittau; Montagem: Sam Winston; Walter Klee (versão inglesa); Direcção artística: Otto Hunte; Guarda-roupa: Tihamer Varady; Maquilhagem: Waldemar Jabs, Oscar Schmidt; Direcção de Produção:Viktor Eisenbach; Departamento de arte: Emil Hasler; Som: Fritz Thiery; Companhias de produção: Universum Film (UFA); Intérpretes: Emil Jannings (Prof. Immanuel Rath), Marlene Dietrich (Lola Lola), Kurt Gerron (o mágico), Rosa Valetti (a mulher do mágico), Hans Albers (Mazeppa, o homem forte), Reinhold Bernt (o palhaço), Eduard von Winterstein (o director da escola), Hans Roth, Rolf Müller, Roland Varno, Carl Balhaus, Robert Klein-Lörk, Charles Puffy, Wilhelm Diegelmann, Gerhard Bienert, Ilse Fürstenberg, Die Weintraub Syncopators, Friedrich Hollaender (pianista), Wolfgang Staudte (aluno), etc. Duração: 124 minutos; Distribuição em Portugal: Edivisa; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 24 de Março de 1931.


MARLÈNE DIETRICH
Filmografia
Na Alemanha: 1922: No Sind die Manner (Os Homens são Assim), de G. Jacoby; 1923: Die Tragodia der Liebe (A Tragédia do Amor), de Joy May; 1924: Der Mensch am Wege (Um Homem à Beira do Caminho), de William Dieterle; Der Sprung Ins Leben (Salto para a Vida), de Dr. J. Guter; 1925: Die Freudlose Gasse (Rua sem Sol), de G. W. Pabst; 1926: Eine Du Darry Von Heute (Uma Dubarry Moderna), de Alexander Korda; Manon Lescaut, de Arthur Robison; Madame Wunscht Keine (A Senhora Não Quer Crianças), de Alexander Korda; Kopf Hoch, Charly! (Cabeça para Cima, Charlie!), de Dr. W. Wolff; Der Juxbaron (O Barão Imaginário), de Dr. W. Wolff; 1927: Seln Grosster Bluff (O Seu Maior Bluff), de Harry Piel; Wenn ein Welb den Weg Verliet (Quando Uma Mulher Perde o seu Caminho), de Gustav Ucicky; 1928: Prinzessin Olala (Princesinha Oh! Lá, Lá!), de Robert Land; 1929: Ich Kusse Ihre Hand, Madame, de Robert Land; Liebesnacht ou Gefahren der Brautzeit, de Fred Sauer; Die Frau, Nach der Man Sich Sehnt, de Kurt (Curtia) Bernhardt; Das Schiff der Verlorenen Menschen, de Maurice Tourneur; 1930: Die Blaue Engel (O Anjo Azul), de Josef von Sternberg
Nos Estados Unidos da América: 1930: Morocco (Marrocos), de Josef von Sternberg; 1931: Dishonored (Fatalidade), de Josef von Sternberg; 1932: Shangai Express (O Expresso de Xangai),  de Josef von Sternberg; Blonde Venus (Vénus Loira), de Josef von Sternberg; 1933: Song of Songs (O Cântico dos Cânticos), de Robert Mamoulian; 1934: The Scarlet Empress (A Imperatriz Vermelha), de Josef von Sternberg; 1935: The Devil is a Woman (A Mulher e o Fantoche ou O Diabo é Uma Mulher), de Josef von Sternberg; 1936: Desire (Desejo), de Frank Borzage; The Garden of Allah (O Jardim de Allah), de Richard Boleslawki; 1937: Knight Without Armour (Cavaleiro Sem Armas),  de Jacques Feyder; Angel (Anjo), de Ernest Lubitsch; 1939: Destry Rides Again (A Cidade Turbulenta),  de George Marshall; 1940: Seven Sinners (Sete Pecadores),  de Tay Garnett; 1941: The Flame of New Orleans (A Condessa de Nova Orleães),  de René Clair; Manpower (Discórdia), de Raoul Walsh; 1942: The Lady Is Willing (Capricho de Mulher),  de Mitchel Leisen; The Spoilers (Oiro),  de Ray Enríght; Pittsburgh (Sangue Negro),  de Lewis Seíler; 1943: Stage Door Canteen (Chuva de Estrelas), de Frank Borzage (Marlènesó aparece no filme anúncio desta obra de propaganda militar); 1944: Follow The Boys (Parada da Alegria),  de Eddie Butherland; 1944: Kismet (Kismet), de William Dieterle;
Em França: 1946: Martin Roumagnac (Desespero), de Georges Lacombe;
De novo nos Estados Unidos da América: 1947: Golden Earring (A Cigana Feiticeira), de Mitchel Leisen; 1948: A Foreign Affair (A Sua Melhor Missão), de Billy Wilder; 1949: Jigsaw (Uma Loira com Dois Corações), de F. Markle; 1950: Stage Fright (Pânico nos Bastidores), de Alfred Hitchcock; 1951: No Highway in The Sky (Viagem Fantástica), de Henry Koster; 1952: Rancho Notorious (O Rancho das Paixões), de Fritz Lang; 1956: Around the World in 80 Days (A Volta ao Mundo em 80 Dias), de Michael Anderson; 1957: The Monte Carlo Story (A História de Monte Carlo), de Samuel Taylor; 1957: Witness for the Prosecution (Testemunha de Acusação), de Billy Wilder; 1958: Touch of Evil (A Sede do Mal), de Orson Welles; 1958: Das Gab’s Nur Einmal (Esperei-o uma Vez), de G. Von Bolvary; 1962: Judgement at Nuremberg (Julgamento de Nuremberg), de Stanley Kramer; 1963: Black Fox, de Clyde Stoumen (narração); 1964: Paris When is Sizzles (Quando Paris Delira), de Richard Quine; 1978: Schöner Gigolo, armer Gigolo (História de um Gigolo), de David Hemmings.

Para lá da sua carreira como actriz desenvolve uma extraordinária actividade como cantora, que se prolonga até bastante mais tarde que a sua despedida dos ecrãs (1978). Morre, depois de um longo período de quase isolamento, em Paris, a 6 de Maio de 1992, com 90 anos de idade. 

DIA 17 DE FEVEREIRO DE 2015


O OURO DE NÁPOLES (1954)

 “L'Oro di Napoli” é um filme em episódios, género que teve alguns cultores entre as décadas de 50 e 70 do século XX, com realização de Vittorio De Sica, que vinha da sua época de ouro, profundamente neo-realista, com “Ladrões de Bicicletas” (1948), “O Milagre de Milão” (1951), “Humberto D” (1952) ou “Estação Terminus” (1953), e antes de dirigir “O Tecto” (1956) ou “Duas Mulheres” (1960). Digamos que “O Ouro de Nápoles” estabelece a transição entre o neo-realismo puro e a época de um neo-realismo róseo, com algumas comédias de fundo social, mas sem a grandeza das obras primitivas. O registo é igualmente uma mescla de realismo social e de comédia de costumes, com um argumento de Cesare Zavattini, Giuseppe Marotta, Vittorio De Sica, partindo de contos do escritor Giuseppe Marotta, numa produção conjunta de dois dos maiores produtores italianos que se cimentavam no terreno por esta altura, Dino De Laurentiis e Carlo Ponti.
São seis os episódios do filme, cada um deles interpretado por um grande actor ou actriz de momento: “Il guappo” (Totó), “Pizze a credito” (Sophia Loren), “Il funeralino” (Teresa De Vita, esta a única actriz pouco conhecida, pois só interpretou dois filmes, ambos de Vittorio De Sica), “I giocatori” (Vittorio De Sica), “Teresa” (Silvana Mangano) e “Il professore” (Eduardo De Filippo). Casting magnífico para cada uma das personagens e cada uma das situações.
Falando de cada episódio, o inicial, com Totó, é o mais hilariante e talvez o de mais imediata metáfora social. Saverio Petrillo (Totó) tem uma família, mulher e filhos, que alimenta com a sua frágil profissão de “Pazzariello”, uma criação do século XVII que sobreviveu nos hábitos napolitanos até meados dos anos 50 (e que, ao que julgamos, ainda persiste como elemento de folclore urbano, mas agora como entretenimento). O “Pazzariello” veste-se a preceito, empunha um bastão dourado, e passeia-se pelas ruas de Nápoles publicitando uma qualquer loja de alimentos ou tasca. Vai recitando slogans, cantando, dançando, distribuindo chistes, e a melhor ilustração deste antigo costume é mesmo este episódio de “O Ouro de Nápoles”, admiravelmente interpretado por Antonio de Curtis, mais conhecido por Totó. Este o aspecto etnográfico mais interessante de “Il guappo”. Mas outros há a referir. Quando Gennaro, um amigo, fica viúvo, Saverio e família recolhem-no em sua casa, para não se sentir sozinho nesses dias. Mas esses dias estendem-se por dez anos, e Gennaro torna-se um prepotente e violento opressor da família, e a sua auréola de poder começa mesmo a fascinar os miúdos que se distanciam da cobardia do pai que só se revolta na sombra. Mas, um dia, Gennaro sente-se mal, um médico diagnostica-lhe precipitadamente um enfarte e, perante a fraqueza do indesejável inquilino, Saverio expulsa-o de casa. Infelizmente, o diagnóstico tinha sido mesmo precipitado, e Gennaro regressa, mas desta feita encontra a família unida. Contra a ditadura do mais forte, a união dos oprimidos resulta sempre, parece ser a mensagem do episódio, excelente na descrição de ambientes, de personagens, e na forma como os intérpretes vivem a história.


Em “Pizza a Credito” mantém-se o tom satírico. Sofia (Sophia Loren) e o seu marido Rosario (Giacomo Furia) têm uma venda de pizza numa ruela de Nápoles. Venda a crédito. A impetuosa Sofia não se satisfaz apenas com o amor do seu sócio, e tem por fora uma aventura que lhe vai causar alguns problemas. Num desses encontros com o amante, perde um valioso anel que o marido lhe havia oferecido, e resolve explicar o sucedido com o facto de o ter deixado cair no interior de alguma pizza. Marido e mulher percorrem os compradores de pizza dessa manhã chuvosa, o que os leva a casa de Don Peppino (Stoppa), que acaba de perder a mulher. A situação acaba por se recompor com alguma habilidade pelo meio, e o sketch resulta não só divertido como um bom retrato de costumes napolitanos.
O conde Prospero (Vittorio De Sica) é o protagonista de “I Giocatori”, pequena história de um jogador compulsivo que perde todo o seu património no jogo. Como a mulher já não lhe dá dinheiro, nem permite que ninguém o abasteça para as suas contínuas fugas, vê-se na contingência de jogar com um miúdo, Gennarino (admiravelmente interpretado por Pierino Bilancioni), filho do porteiro, com o qual perde sem remissão.


“Teresa” permite a Silvana Mangano uma interpretação magnífica, na figura de uma prostituta que é resgatada por Don Nicola (Erno Crisa) que casa com ela como auto-punição pelo facto de uma jovem se ter suicidado por sua causa. A descoberta deixa-a furiosa e só no seu quarto, o que a leva a fugir de casa, reconsiderando depois…
Como em quase todos os episódios do filme, existem personagens fortes que permitem aos actores desempenhos brilhantes. É o que também acontece em “Il Professore”, onde Eduardo De Filippo é um tal Don Ersilio Miccio, conselheiro de todos os moradores do bairro, a troco de umas quantas liras. Os vizinhos reclamam contra a tirania do conde Alfonso Maria di Sant’Agata dei Fornai (Crosio), que, ao sair de casa de carro, obriga todos os dias os moradores a mudarem a habitual disposição dos seus pertences que se estendem pela rua. O “professor” aconselha-os a organizarem uma sonora praga colectiva.
O episódio "Funeralino" apresenta um tom totalmente diverso dos anteriores, onde, com maior ou menor felicidade, impera o humor. Este é dramático, segue o trajecto de um carro funerário pelas ruas e avenidas da cidade, com a mãe, amigos e algumas crianças a acompanharem o cortejo fúnebre de uma criança. Não há quase intriga, dir-se-ia um documentário, com apenas uma pausa para o momento em que a mãe se comove ao distribuir caramelos pelas crianças que seguem o funeral. Aquando da apresentação do filme no Festival de Cannes, este episódio foi retirado, e recolocado posteriormente.


Curiosamente, este, como alguns outros títulos deste período, parece anunciar uma mudança de percurso no interior do neo-realismo. “O Ouro de Nápoles” continua crítico em relação à sociedade italiana, mas opta por um registo de humor e sátira que o tornam mais apetecível como espectáculo e entretenimento. Na altura, isso foi visto como uma espécie de traição ao projecto inicial, mesmo de algum retrocesso artístico e cinematográfico. Hoje em dia, não será assim quanto a muitas obras que se atreveram a procuram novas fórmulas de aproximação da realidade e novas linguagens. O episódio "Funeralino" pode mesmo antecipar algumas ideias mais tarde desenvolvidas por Antonioni. Por outro lado, este é definitivamente um filme de actores, onde Vittorio De Sica se mostra um director de invulgar sensibilidade, criando personagens inesquecíveis, proporcionando a Silvana Mangano e Sophia Loren trabalhos notáveis, bem assim como a Totò, Eduardo De Filipo e ao próprio De Sica. A própria Teresa De Vita, que só interpretou este filme e uma outra comédia do mesmo De Sica, “Il Giudizio Universale”, de 1961, oferece momentos memoráveis nessa contida e rigorosa interpretação de uma mãe em sofrimento. Um belo rosto que o cinema perdeu cedo (a actriz só viria a falecer em 2013).

O OURO DE NÁPOLES
Título original: L'Oro di Napoli (original title)
Realização: Vittorio De Sica (Itália, 1954); Argumento: Cesare Zavattini, Vittorio De Sica, Giuseppe Marotta, segundo novelas deste último; Produção: Dino De Laurentiis, Marcello Girosi, Carlo Ponti; Música: Alessandro Cicognini; Fotografia (cor): Carlo Montuori; Montagem: Eraldo Da Roma; Design de produção: Gastone Medin; Decoração: Ferdinando Ruffo; Guarda-roupa: Pia Marchesi; Direcção de Produção: Nino Misiano, Roberto Moretti; Assistentes de realização: Luisa Alessandri, Franco Montemurro; Som: Aldo Calpini, Biagio Fiorelli, Bruno Moreal; Efeitos visuais: Pablo Mariano Picabea (versão restaurada); Companhias de produção: Carlo Ponti Cinematografica, Dino de Laurentiis Cinematografica (Ponti-De Laurentiis); Intérpretes: episódio "Teresa" - Silvana Mangano (Teresa), Erno Crisa  (Don Nicola), Ubaldo Maestri (Don Ubaldo); episódio "Pizze a credito" - Sophia Loren (Sofia), Paolo Stoppa (Don Peppino), Giacomo Furia (Rosario), Alberto Farnese (Alfredo), Tecla Scarano (amigo de Peppino), Tartaro Pasquale , Roberto De Simone (Umberto Scognamiglio), Gigi Reder (amigo de Peppino), Rosetta Dei; episódio "Il professore"- Eduardo De Filippo (Don Ersilio Miccio) Tina Pica (Velha), Gianni Crosio (Alfonso Maria di Sant'Agata dei Fornai), Nino Imparato (Gennaro); episódio "I giocatori" - Vittorio De Sica (Conde Prospero B.), Mario Passante (Giovanni), Irene Montaldo (Countess B.); episódio "Il guappo" - Totò (Don Saverio Petrillo), Lianella Carell (Carolina), Pierino Bilancioni (Gennarino), Lars Borgström (Federico), Agostino Salvietti (Gennaro Esposito), Pasquale Cennamo (Don Carmine Savarone), Nino Vingelli; episódio "Funeralino"- Teresa De Vita (mãe). Duração: 134 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Estevez; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 3 de Novembro de 1955.


SILVANA MANGANO (1930-1989)
A eleição de Miss Itália que aconteceu em 1947 tornou-se num acontecimento mítico. No ano anterior, a futura Silvana Pampanini ficará em segundo lugar num concurso ganho por Rossana Martini. Esta passaria despercebida como actriz, e a primeira seria uma das deusas do cinema italiano das décadas de 40 e 50. Mas em 47, o caso fiou mais fino. Silvana Mangano e Eleonora Rossi Drago estiveram entre as concorrentes, e o troféu foi ganho por Lucia Bose. Gianna Maria Canale ficou em segundo, e Gina Lollobrigida em terceiro. Sophia Loren seria Miss Italia em 1950. Não se pode dizer que este concurso de beleza não tivesse tido uma importância decisiva na história do cinema italiano.
Silvana Mangano, que nascera a 21 de Abril de 1930, em Roma, e viria a falecer em Madrid, em 16 de Dezembro de 1989, vítima de cancro, foi, no entanto, descoberta para o cinema, em pequenos papéis, em 1945, num filme de René Chanas, “Le Jugement Dernier”, continuando depois em obras de Mario Costa, Alberto Lattuada, Duilio Coletti, entre outros, até se afirmar definitivamente em “Riso Amaro (Arroz Amargo), de Giuseppe de Santis, em 1949. Conta-se que concorreu ao casting do filme, em vestimenta aprimorada e bem maquilhada, não despertando então nenhum interesse no realizador que, dias depois, se viria a cruzar com ela na Via Veneto, em Roma, com um vestuário de dia a dia e um rosto ao natural, e cabelos encharcados pela chuva, e logo ali ficou traçado o seu destino. Tinha 19 anos.

Filha de um siciliano, condutor de comboios, e de uma inglesa, estudou dança com Jia Ruskaya e trabalhou como modelo para o estilista francês Georges Armenkov. Decide partir para França a fim de trabalhar como modelo na Maison Mascetti e foi precisamente em França que se estreia no cinema, como já vimos. Em 1946, foi eleita "Miss Roma" e entrou posteriormente na eleição de Miss Itália. Segue um curso de declamação teatral, onde conheceu Marcelo Mastroianni, seu primeiro namorado e com quem trabalharia muito pouco a partir daí, dados os ciúmes do seu marido, o produtor Dino De Laurentiis, com quem casou nesse mesmo ano de 1949. O filme de Giuseppe de Santis foi um sucesso imenso, e muito ficou a dever ao talento, à beleza e às curvas da sua protagonista. Rapidamente se tornou um sex symbol do cinema italiano, numa altura em que imperavam as sex symbols naquela cinematografia (relembrem-se as Miss Itália atrás citadas, todas elas explodindo nos ecrãs com fragor). No início dos anos 50, títulos como “Anna”, de Alberto Lattuada (1951), “O Ouro de Nápoles” de Vittorio De Sica ou “Mambo”, de Robert Rossen (ambos de 1954) transformaram-na numa vedeta internacional, que a carreira futura, bem aconselhada por Dino de Laurentiis, iria confirmar plenamente. Foi gradualmente abandonando personagens moldadas pelo físico e entregando-se a personagens mais complexas, sendo dirigida por alguns dos maiores directores do seu tempo: René Clément, Mario Monicelli, Mario Camerini, Martin Ritt, Vittorio De Sica, Dino Risi, Marco Ferreri, Franco Zeffirelli, Tinto Brass, Luchino Visconti, Pier Paolo Pasolini, Luigi Comencini. Em 1960, Federico Fellini começou por a escolher para interpretar, ao lado de Marcello Mastroianni, “La Dolce Vita”, mas De Laurentiis, ciumento, não permitiu que ela aceitasse a personagem depois criada por Anouk Aimée. Separou-se de De Laurentiis em 1988, com quem teve quatro filhos: Veronica, Raffaella (futura produtora), Federico e Francesca. Afastou-se do cinema, descontente com a sua imagem, passou a viver em Madrid, padecendo de um cancro no estomago, sofrendo de insónias e de depressão, e nunca esquecendo a morte do filho Frederico que, aos 25 anos (em 1981), faleceu vítima de uma acidente de aviação no Alasca. Ainda surgiu em “Duna” (1984), de David Lynch, a pedido de sua filha Raffaella, produtora do filme, e ao lado de Marcello Mastroianni, no filme de Nikita Mikhalkov, “Olhos Negros” (1987). Morreu em casa da filha Francesca, em 16 de Dezembro de 1989, na capital de Espanha, onde se entreteve a fazer tapeçaria nos últimos anos de vida. Reconciliada com De Laurentiis e Mastroianni, seus maiores amigos.
Entregaram-lhe os maiores prémios do cinema italiano: o David di Donatello, o Nastro d'Argento, ou o do Sindicado dos Jornalistas Italianos de Cinema. Nunca se impôs nos EUA, como outras suas conterrâneas, Sophia Loren ou Anna Magnani, que lograram Oscars.  


Filmografia
Com actriz: 1945: Le Jugement Dernier, de René Chanas; 1946: L'Elisir d'Amore (O Elixir do Amor), de Mario Costa; 1947: Il Delitto di Giovanni Episcopo, de Alberto Lattuada; 1948: Gli Uomini sono Nemici (Lisboa, Encruzilhada de Paixões), de Ettore Giannini; 1949: Il Lupo della Sila (O Lobo da Calábria), de Duilio Coletti; Cagliostro ou Gli Spadaccini della Serenissima ou Black Magic (Cagliostro), de Gregory Ratoff e Orson Welles; Riso amaro (Arroz Amargo), de Giuseppe de Santis; 1950: Il Brigante Musolino (Não Matei!), de Mario Camerini; 1951: Anna (Ana), de Alberto Lattuada; 1953: Il Più Comico Spettacolo del Mondo (O Mais Cómico Espectáculo do Mundo), de Mario Mattoli (não creditada); 1954: Mambo (Mambo), de Robert Rossen; 1954: Ulisses (Ulisses), de Mario Camerini; 1954: L'Oro di Napoli (O Ouro de Nápoles), de Vittorio de Sica (episódio "Teresa"); 1956: Uomini e Lupi (Homens e Lobos), de Giuseppe de Santis e Leopoldo Savona; 1957: La Diga sul Pacifico ou This Angry Age, de René Clement; 1958: La Tempesta, de Alberto Lattuada; 1959: La Grande Guerra (A Grande Guerra) de Mario Monicelli; 1960: Jovanka e le Altre (Jovanka e as Outras), de Martin Ritt; 1961: Crimen (Crime), de Mario Camerini; 1961: Il Giudizio Universale (O Último Julgamento), de Vittorio De Sica; 1961: Barabba (Barrabás),de Richard Fleischer; 1963: Il Processo di Verona, de Carlo Lizzani; 1964: La Mia Signora (A Minha Senhora), de Mauro Bolognini, Tinto Brass e Luigi Comencini (episódios "L'Uccellino", "L'Automobile", "I Miei Cari", “Eritrea"); Il Disco Volante,  de Tinto Brass; 1966: Io, io, io... e gli altri (Eu, Eu, Eu... e os Outros), de Alessandro Blasetti; 1967: Scusi, lei è Favorevole o Contrario? (Como casar a nossa filha?), de Alberto Sordi; Le Streghe (A Magia da Mulher), de Mauro Bolognini, Vittorio De Sica, Pier Paolo Pasolini, Franco Rossi e Luchino Visconti (episódios "La Strega Bruciata Viva", "Senso civico" e "La Terra vista dalla Luna"); 1967: Édipo re (Édipo Rei), de Pier Paolo Pasolini; 1968: Capriccio all'Italiana - episódios “La Bambinaia”, de Mario Monicelli, “Perché?”, de Mauro Bolognini e “Viaggio di Lavoro”, de Pino Zac; 1968: Teorema (Teorema), de Pier Paolo Pasolini; 1971: Scipione detto anche l'africano (Cipião Dito o Africano), de Luigi Magni; 1971: Morte a Venezia (Morte em Veneza), de Luchino Visconti; 1971: Il Decameron (Decameron), de Pier Paolo Pasolini (não creditada); 1972: D'Amore si Muore de Carlo Carunchio; 1972: Lo Scopone Scientifico (O Jogo da Fortuna e do Azar), de Luigi Comencini; 1972: Ludwig (Luís da Baviera), de Luchino Visconti; 1974: Gruppo di Famiglia in un Interno (Violência e Paixão), de Luchino Visconti; 1984: Dune (Duna), de David Lynch; 1987: Oci Ciornie (Olhos Negros), de Nikita Mikhalkov.


SOPHIA LOREN (1934 - )
“Nascida” num concurso de beleza, “Miss Itália 1950”, Sofia Loren consegue em três ou quatro décadas de carreira no cinema, tornar-se na actriz mais premiada de sempre do cinema italiano, uma cinematografia onde abundam as grandes actrizes e as grandes vedetas. Sofia Villani Scicolone, também conhecida por Sofia Lazzaro, Sofia Scicolone e finalmente Sophia Loren, nasceu a 20 de Setembro de 1934, em Roma. Ainda muito jovem transferiu-se com a família para o município de Pozzuoli, em Nápoles, onde viveu uma adolescência difícil. O pai, o engenheiro Riccardo Scicolone, abandonou a mãe de Sofia, Romilda Villani, uma professora de piano, sem se casar com ela, apesar de lhe ter feito duas filhas, Sofia e a irmã mais nova, Maria Scicolone. 1950 marca uma data importante na sua carreira. Concorre a Miss Itália, fica em segundo ou quarto lugar (as fontes divergem!), mas é considerada Miss Elegância. Os focos centram-se nela. Ainda com o nome de Sophia Scicolone estreia-se no cinema, como figurante e em pequenos papéis, em obras muito desiguais, onde no entanto são notados os seus seios nus, nalguns deles. No ano seguinte, passa a assinar como Sophia Lazzaro e faz fotonovelas. Só em 1953 aparece como Sophia Loren. Durante a rodagem de “Africa sotto i Mari” (Abismos Africanos), de Giovanni Roccardi, em 1952, é “descoberta” pelo produtor Carlo Ponti, que assina com ela um contrato de sete anos e a lança em obras de outra dimensão, como “L'Oro di Napoli” (O Ouro de Nápoles), de Vittorio De Sica. Casam em 1957, uma união que dura até 1962, data em que o casamento é considerado nulo pelas autoridades, pois Carlo Ponti não se tinha divorciado legalmente de um antigo casamento. Voltam a casar em 1966, e estão juntos até 2007, data da morte de Ponti, 22 anos mais velho que Sophia Loren. Tiveram dois filhos, Carlo e Edoardo. Foi cunhada de Romano Mussolini, filho de Benito Mussolini. 


Entre 1957 e 1961 instala-se em Hollywood, onde roda sob a direcção de cineastas como Jean Negulesco, Stanley Kramer, Henry Hathaway, Delbert Mann, Carol Reed, George Cukor, Melville Shavelson, Sidney Lumet, Michael Curtiz ou Chalie Chaplin, ao lado de actores como Cary Grant, Frank Sinatra, John Wayne, Anthony Perkins, William Holden, Trevor Howard, Marlon Brando, Anthony Quinn, George Sanders, Peter Sellers, Clark Gable, John Gavin ou Charlton Heston. Em 1962, recebe o Oscar de Melhor Actriz pelo filme “Duas Mulheres”, que também lhe valeu o prémio de Melhor Actriz no Festival de Cannes. A partir daí continua a trabalhar com grandes realizadores, como Vittorio De Sica, para quem ela era a sua actriz fetiche, Federico Fellini, Ettore Scola, Robert Altman, Lina Wertmüller, entre outros. Construiu uma sólida carreira, que se prolonga até hoje, apesar de quase ter abandonado o cinema no final da década de 70. Daí até ao presente, surge num ou outro filme e nalguns telefilmes, mas vai aparecendo regularmente em festivais e outras manifestações sociais sobretudo ligadas ao cinema. Existe uma estrela no Hollywood Walk of Fame, em Los Angeles, com o seu nome. Encontra-se frente ao nº 7050, em Hollywood Boulevard. Ganhou um Oscar, além de 57 outros prémios de grande relevo internacional, e mais 27 nomeações.


Filmografia
Como actriz / sob o nome de Sophia Scicolone: 1950: Il Voto, de Mario Bonnard; Totòtarzan (Totó Tarzan), de Mario Mattoli; Le Sei Moglie di Barbablù (Totó e o Barba Azul), de Carlo Ludovico Bragaglia; 1950: Io sono il Capataz (O Capataz Sou Eu), de Giorgio Simonelli; Cuori sul mare, de Giorgio Bianchi; Luci del Varietà, de Federico Fellini e Alberto Lattuada; 1951: Quo Vadis (Quo Vadis), de Mervyn LeRoy; Il Padrone del Vapore, de Mario Mattoli; Milano Miliardaria, de Marcello Marchesi, Marino Girolami e Vittorio Metz; Il mago per Forza, de Marcello Marchesi, Marino Girolami e Vittorio Metz; Lebbra Bianca, de Enzo Trapano; Anna (Ana), de Alberto Lattuada; 1952: È Arrivato l'Accordatore, de Duilio Coletti; 
- Sob o nome de Sophia Lazzaro: 1951: Era lui...si, si (O Rei dos Pândegos) de Vittorio Metz, Marino Girolami e Marcello Marchesi; Il sogno di Zorro (O Neto do Zorro), de Mario Soldati; La tratta delle bianche, de Luigi Comencini; 1953: La Favorita, de Cesare Barlacchi; 
- Sob o nome de Sophia Loren: 1953: La Domenica della Buona Gente, de Anton Giulio Majano;  Africa sotto i Mari (Abismos Africanos), de Giovanni Roccardi; 1953: Due notti con Cleopatra (A Rival de Cleópatra), de Mario Mattoli; Aïda (Aida), de Clemente Fracassi; Ci Troviamo in Galleria (A Bela Napolitana), de Mauro Bolognini; 1954: Tempi Nostri (Os Nossos Tempos), de Alessandro Blasetti (episódio "La macchina fotografica"); L'Oro di Napoli (O Ouro de Nápoles), de Vittorio De Sica (episódio "Pizze a credito"); Un Giorno in Pretura (No Banco dos  Réus), de Steno; Attila (Átila), de Pietro Francisi; Peccato che sia una Canaglia (Que Pena Seres Vigarista!), de Alessandro Blasetti; Carosello Napoletano (Carrocel Napolitano), de Ettore Giannini; Pellegrini d'amore (O Que Faz o Amor), de Andrea Forzano; Miseria e nobiltà (Totó Rico e Pobre), de Mario Mattoli;  1955: La Donna del Fiume (A Rapariga do Rio Pó) de Mario Soldati; 1955: Il Segno di Venere (O Signo de Vénus), de Dino Risi; La Bella Mugnaia (A Bela Moleira), de Mario Camerini; Pane, amore, e... (Pão, Amor e...) de Dino Risi; 1956: La Fortuna di Essere Donna (A Sorte de Ser Mulher), de Alessandro Blasetti; 1957: Boy on a Dolphin (A Lenda da Estátua Nua), de Stanley Kramer; The Pride and the Passion (Orgulho e Paixão), de Stanley Kramer; Legend of the Lost (A Cidade Perdida), de Henry Hathaway; 1958: Desire Under the Elms (Desejo Sob os Ulmeiros), de Delbert Mann; The Key (A Chave), de Carol Reed; Black Orchid (Orquídea Negra), de Martin Ritt; Houseboat (Quase nos Teus Braços) de Melville Shavelson; 1959: That Kind of Woman (Uma Certa Mulher) de Sidney Lumet; 1960: Heller in Pink Tights (Agarrem Essa Loira), de George Cukor; A Breath of Scandal (Escândalo na Corte), de Michael Curtiz; It Started in Naples (Aconteceu em Nápoles), de Melville Shavelson; The Millionairess (A Milionária) de Anthony Asquith; 1960: La Ciociara (Duas Mulheres), de Vittorio De Sica; 1961: Le Cid (El Cid), de Anthony Mann; Madame Sans-Gêne (Madame Sans-Gêne), de Christian-Jaque; 1961: Boccace 70 (Boccaccio '70), de Federico Fellini, Mario Monicelli, Luchino Visconti, Vittorio De Sica (épisode “La Riffa”, de Vittorio De Sica); 1962: Le Couteau dans la Plaie (A Fronteira da Noite), de Anatole Litvak; 1962: I Sequestrati di Altona (Os Sequestrados de Altona) de Vittorio De Sica; 1963: Ieri, oggi, domani (Ontem, Hoje e Amanhã) de Vittorio De Sica; 1964: The Fall of the Roman Empire (A Queda do Império Romano), de Anthony Mann; Matrimonio all'italiana (Matrimónio à Italiana), de Vittorio De Sica; 1965: Opération Crossbow (Operação V-2), de Michael Anderson; Lady L (Lady L), de Peter Ustinov; La Comtesse de Hong-Kong (A Countess from Hong Kong), de Charles Chaplin; 1966: Judith (Judith), de Daniel Mann; Arabesque (Arabesco), de Stanley Donen; 1967: C'era una Volta...( Felizes Para Sempre), de Francesco Rosi; Questi Fantasmi (Dois à Italiana), de Renato Castellani; 1968: Sophia: A self-portrait documentaire, de Mel Stuart e Robert Abel; 1970: I Girasoli (O Último Adeus) de Vittorio De Sica; 1971: La Moglie del Prete (A Mulher do Padre), de Dino Risi; La Mortadela (Mortadela), de Mario Monicelli; 1972: Bianco, Rosso e... (O Pecado) de Alberto Lattuada; Man of La Mancha (O Homem da Mancha), de Arthur Hiller; 1974: Il Viaggio (A Viagem), de Vittorio De Sica; Verdict (Veredicto), de  André Cayatte; Brief Encounter (Breve Encontro), de Lina Wertmüller (TV); 1975: La Pupa del Gangster, de Giorgio Capitani; 1977: The Cassandra Crossing (Cassandra Crossing), de George Pan Cosmatos; Una Giornata Particolare (Um Dia Inesquecível) de Ettore Scola; 1978: Angela (Angela: O Amor Impossível), de Boris Sagal; Fatto di sangue fra due uomini per causa di una vedova - si sospettano moventi politici (Pacto de Sangue), de Lina Wertmuller; Brass Target (O Grande Golpe do Ouro), de John Hough; 1979: Firepower (A Ferro e Fogo), de Michael Winner; 1980: Sophia Loren: Her Own Story (TV); 1984: Qualcosa di Biondo (TV);  1986: Courage (TV); 1988: Mamã Lúcia (TV); 1989: La Ciociara (TV); 1990: Sabato, Domenica e Lunedì, de Lina Wertmüller; 1994: Prêt-à-Porter (Prêt-à-Porter), de Robert Altman; 1995: Grumpier Old Men (Como Pescar Uma Italiana Sem Partir a Cana), de Howard Deutch; 1997: Soleil, de Roger Hanin; 2001: Francesca e Nunziata de Lina Wertmüller (TV); 2002: Between Strangers (Entre Estranhos) de Edoardo Ponti: 2004: Peperoni ripieni e pesci in faccia, de Lina Wertmüller; 2004: Lives of the Saints, de Jerry Ciccoritti (TV); 2009: Nine (Nove), de Rob Marshall; 2010: La mia casa è piena di specchi, de Vittorio Sindoni (TV); 2014: La Voce Umana, de Edoardo Ponti (curta-metragem).

DIA 10 DE FEVEREIRO DE 2015


E DEUS… CRIOU A MULHER (1956)

Roger Vadim não pertencia ao grupo dos “Cahiers du Cinema” que reclamou para si a criação da “Nouvelle Vague”, em finais da década de 50 do século XX, mas a verdade é que se há filme que tenha lançado um novo movimento em França, em 1956, esse filme foi "Et Dieu... Créa la Femme". Por variadíssimas razões: um jovem realizador que não tem atrás de si nenhuma experiência a não ser como argumentista, uma produção bastante diferente da dos habituais estúdios franceses da época, uma realização muito mais livre e espontânea, rodada em grande parte em exteriores (e interiores) naturais (na Riviera francesa, sobretudo em La Ponche e Saint-Tropez), uma atenção muito especial a personagens jovens, com comportamentos que se desviavam muito dos padrões tradicionais, actores quase desconhecidos (Brigite Bardot tinha atrás de si uma carreira de figurante e de secundária até 1956, o mesmo se podendo dizer de Jean-Louis Trintignant), sobretudo sem as técnicas de representação do então chamado “cinema de papa”. Pode, portanto, dizer-se que se não está incluída no lote das películas que os puristas da “Nouvelle Vague” advogam, será certamente um excelente exemplo prévio do que se anunciava. Com a agravante de o seu êxito comercial e de crítica muito ter contribuído para abrir caminho às obras de Truffaut, Godard, Rivette, Chabrol, e tantos outros. De resto, nenhuma linha ideológica unia estes cineastas, e a sua atenção inicial virou-se sobretudo para os mesmos temas de Vadim: os jovens, a sua rebeldia perante a sociedade onde cresciam, perante a hipocrisia de um stato quo bem instalado que não quer perder as regalias de que usufrui. Jovens que descobrem uma sexualidade livre, que rompem com tabus, que expõem o corpo e o desejo, que querem viver perigosamente. Veja-se o caso de Juliete Hardy (Brigitte Bardot), a protagonista de “E Deus… criou a Mulher”, quando lhe perguntam porque dispara contra garrafas: “Adoro disparar. É excitante”.


Numa zona piscatória de St. Tropez, Juliete Hardy, uma órfã com cerca de dezoito anos, é empregada numa tabacaria, e vive sob a custódia de uma família que a adoptou, retirando-a do orfanato. Juliete é temperamental, rebelde, de sangue quente e de sexualidade à flor da pele. Não será de estranhar que todos se virem quando passa, sobretudo montada na sua bicicleta e com uma roupa colado ao corpo, desenhando-lhe as formas e deixando adivinhar o desejo inquieto. Eric Carradine (Curd Jurgens), um homem de meia-idade e bem instalado nos negócios dos estaleiros, não esconde as intenções, nem ela lhe esconde o corpo, quando este a visita, e a encontra a tomar banhos de sol, nua. Mas Antoine Tardieu (Christian Marquand) também a deseja, com intenções igualmente pouco recomendáveis. Quando a postura de Juliete começa a dar brado na comunidade e as vozes se levantam, os pais adoptivos querem devolvê-la ao orfanato. Para impedir esse desenlace, Michel Tardieu (Jean-Louis Trintignant), o generoso e algo ingénuo irmão mais novo de Antoine, oferece-se para casar com Juliete. O que acontece, com consequências dramáticas.


Nos anos 50, tudo é escandaloso neste filme. Não que a realidade do dia-a-dia não confirmasse todas as situações e personagens, mas nunca tinham sido apresentadas no cinema imagens com tal crueza. Antes de tudo o mais, a figura de Juliete Hardy, a sua irreverência, a sua ingénua perversidade (parece contraditório, mas não é, está patente e é um dos fascínios desta personagem), o gosto pelo risco, a sedução, o erotismo selvagem e sem regras, tudo isso transtorna as mentes bem pensantes da época. Juliete Hardy é a provocação em andamento, e não foi de estranhar que as Ligas de Decência dos EUA tenham boicotado a obra, pouco depois de terem feito o mesmo ao filme de Elia Kazan “A Voz do Desejo” (Baby Doll), igualmente de 1956. O escândalo ajudou a promover o título, que rapidamente se tornou um sucesso. Depois, o interesse pouco ortodoxo de um homem de certa idade por uma jovem de dezoito anos não era tema fácil de digerir, nem sequer a forma como Antoine deseja a presa que julga fácil. A ingenuidade de Michel Tardieu e a forma como ela é rapidamente ultrapassada por Juliette será outro motivo de inquietação. Nada no filme se coaduna com os “bons costumes” que as “gentes de bem” pregam (mesmo que muitas vezes os não pratiquem na prática, mas esse é um outro problema: vícios privados, públicas virtudes, é o lema). O que “E Deus…Criou a Mulher” vem pôr a descoberto é precisamente essa duplicidade de olhar e de comportamento. Roger Vadim e a sua vedeta de momento escancaram a hipocrisia da V República Francesa. Juliete Hardy ficará para sempre como o símbolo de uma juventude rebelde e insubmissa. O retrato feminino e francês dos “teddy boys” americanos que eram visíveis em filmes como “Fúria de Viver” (Rebel Without a Cause), “O Selvagem” (The Wild One) ou “Sementes de Violência” (Blackboard Jungle).


De resto, a obra de Vadim apresentava uma espontaneidade de olhar e de escrita que surpreendia e mostrava uma Saint-Tropez que rapidamente se tornaria uma sensação turística por causa dos feitos de BB (o mesmo aconteceria mais tarde na paria de Búzios, no Brasil, que a actriz visitou e que tornou famosa de tal forma que tempos depois se lhe erigiu uma estátua no centro da cidade). Brigitte lançava-se aqui também como cantora, sobretudo com um tema que faria furor: “Dis-moi quelque chose de gentil”.
O filme acaba, de certa forma, por castigar a ousadia da jovem, mas ostentar essa sensualidade de que os homens se aproximam mas não conseguem refrear (é ela sempre que comanda as operações, ainda que nem sempre da melhor maneira) era já de si um elemento perturbador e profundamente “novo”. Para mais numa pouco mais que adolescente. Era um passo importante na emancipação da mulher, sobretudo na assunção de um lugar idêntico ao do homem, num capítulo tão sensível como a sexualidade. 



E DEUS… CRIOU A MULHER
Título original: Et Dieu... Créa la Femme
Realização: Roger Vadim (França, Itália, 1956); Argumento: Roger Vadim, Raoul Lévy; Produção: Raoul Lévy, Ignace Morgenstern; Música: Paul Misraki; Fotografia (cor):  Armand Thirard; Montagem: Victoria Mercanton; Design de produção: Jean André;  Maquilhagem: Hagop Arakelian; Direcção de Produção: Michel Choquet, Claude Ganz, Jacqueline Leroux-Cabuis; Assistentes de realização: Pierre Boursaus, Paul Feyder;  Departamento de arte:  Jean Forestier, Georges Petitot; Som: Pierre-Louis Calvet; Companhias de produção: Cocinor, Iéna Productions, Union Cinématographique Lyonnaise (UCIL); Intérpretes: Brigitte Bardot (Juliete Hardy), Curd Jürgens (Eric Carradine), Jean-Louis Trintignant (Michel Tardieu), Jane Marken (Madame Morin, Jean Tissier (M. Vigier-Lefranc), Isabelle Corey (Lucienne), Jacqueline Ventura (Mme Vigier-Lefranc), Jacques Ciron, Paul Faivre, Jany Mourey, Philippe Grenier, Jean Lefebvre, Leopoldo Francés, Marie Glory, Georges Poujouly, Christian Marquand (Antoine Tardieu), Roger Vadim (um amigo de Antoine no carro), Raoul Lévy (um jogador), etc. Duração: 95 minutos; Distribuição em Portugal: PrisvÍdeo; Classificação etária: M/ 12 anos.


BRIGITTE BARDOT (1934 - )
Foi Jean Cocteau, quem a dirigiu num filme seu, que dela disse: “A sua beleza e talento são inegáveis, mas ela possui qualquer coisa mais que atrai os idólatras numa época privada de deuses". Falava de Brigitte Bardot. Nasceu a 28 de Setembro de 1934, em Paris, França, de uma família burguesa, bem instalada na vida. A mãe é Anne-Marie Mucel, o pai, Louis Bardot, um industrial de ar líquido, dono das Usines Bardot, e um entusiasta por cinema. Educada de forma rigorosa, desde muito nova que lhe foi diagnosticada uma ambliopia, disfunção oftálmica caracterizada pela perda da visão num dos olhos, no seu caso o esquerdo. Estuda dança clássica, sendo uma óptima aluna do curso Bourgat. Em 1949, entra para o Conservatoire de Paris. Nesse mesmo ano, Hélène Lazareff, directora então da “Elle” e do “Jardin des Modes”, grande amiga de Madame Bardot, escolhe Brigitte para apresentar a moda jovem. Aos 15 anos, torna-se no símbolo juvenil da “Elle”, aparecendo na capa. Marc Allégret, realizador, aprecia as fotos, e convoca-a, mas os pais opõem-se a que ela seja actriz. Foi o avô que a defendeu: “Si cette petite doit un jour être une putain, elle le sera avec ou sans le cinéma, si elle ne doit jamais être une putain, ce n'est pas le cinéma qui pourra la changer! Laissons-lui sa chance, nous n'avons pas le droit de disposer de son destin”. O assistente de Allégret era Roger Vadim. O encontro não leva a filme nenhum na altura, mas a uma paixão entre Vadim e Brigitte. A relação não é bem vista pelos pais, que a querem enviar para Inglaterra. Aproveitando o facto de os pais irem a um concerto, tenta suicidar-se com gás. Foi o acaso do espectáculo ter sido cancelado que lhe salvou a vida: regressados a casa mais cedo, os Bardot salvam a filha, e aceitam não a enviar para Inglaterra, a troco da promessa de ela não casar com Vadim, senão aos 18 anos. O que acontece. Só a 21 de Dezembro de 1952. Estreia-se, entretanto, no cinema, num filme de Jean Boyer, “Le Trou Normand”, num pequeno papael mínimo. Continua em papéis insignificantes, em filmes importantes, ou papéis mais importantes, em filmes insignificantes. Passa pelo teatro, em “L'Invitation au Château”, de Jean Anouilh. Uma experiência falhada, que não irá repetir.

A consagração chega em 1956, quando Roger Vadim e Raoul Lévy escrevem um argumento intitulado “Et Dieu... créa la Femme”. Ninguém queria produzir o filme, mas toda a gente comentava já a beleza provocante de uma jovem que passeava por Cannes. Foi Curd Jürgens, um actor de prestígio na época, que aceitou patrocionar o filme que se iria rodar numa localidade não muito conhecida, Saint-Tropez. O filme iria alterar tudo isso: Brigitte Bardot passaria rapidamente a ser a mundialmente conhecida como BB, lenda e mito do cinema, modelo para a estátua da República Francesa, sex-symbol international, paradigma para a juventude. Saint-Tropez passava a ser destino de eleição na Riviera Francesa. Vadim seria realizador do momento. Consta que um caso com Jean-Louis Trintignant iria precipitar o divórcio com Vadim, a 6 de Dezembro de 1957.
Sobre “E Deus Criou a Mulher”, Vadim disse: “Je voulais, à travers Brigitte, restituer le climat d'une époque, Juliette est une fille de son temps, qui s'est affranchie de tout sentiment de culpabilité, de tout tabou imposé par la société et dont la sexualité est entièrement libre. Dans la littérature et les films d'avant-guerre, on l'aurait assimilée à une prostituée. C'est dans ce film une très jeune femme, généreuse, parfois désaxée et finalement insaisissable, qui n'a d'autre excuse que sa générosité”.
Mal acolhido em França, é exportado para os EUA, onde conhece um triunfo invulgar. Fala-se em “bardotlatria”. Relançado em salas francesas, é agora um sucesso. Os “Cahiers du Cinéma”, que haviam menosprezado o filme e os intérpretes, engolem seco. BB é a francesa mais conhecida na América. A imprensa fala de uma mulher que conjuga o melhor de Marlène Dietrich, de Ava Gardner, de Jane Russell, de Marilyn Monroe, numa mistura explosiva, com uma fantasia pessoal muito própria. Torna-se a mulher fetiche das décadas de 50 e 60 do século XX. O símbolo da emancipação feminina e da liberdade sexual. Mulher-criança, mulher fatal. Uma mescla explosiva que não deixou ninguém indiferente. No feminino, só Simone de Beauvoir ou Françoise Sagan se lhe aproximaram em celebridade. Roda sob as ordens de alguns dos maiores realizadores desse tempo: Sacha Guitry, Marc Allégret, René Clair, Anatole Litvak, Robert Wise, Claude Autant-Lara, Christian-Jaque, Serge Bourguignon, Henri-Georges Clouzot, Jean Cocteau, Louis Malle, Jean-Luc Godard, Édouard Molinaro, Edward Dmytryk, Michel Deville, Robert Enrico, Nina Companeez, para lá do próprio Roger Vadim. Entretanto, a sua vida sentimental é tumultuosa. Durante as filmagens de “Babette Vai à Guerra” (1959), conhece Jacques Charrier, casam e permanecem unidos até 1962. Em 1966, volta a casar com Gunter Sachs, com quem se mantém até ao divórcio, em 1969. Só em 1992 volta a casar, agora com o político de extrema-direita Bernard d'Ormale. Dizem os biógrafos que manteve relações com Jean-Louis Trintignant, Sami Frey, Gilbert Bécaud, Serge Gainsbourg, Sacha Distel, o escritor John Gilmore e o escultor Miroslaw Brozek. Como cançonetista conhece igualmente o sucesso, com temas como "Harley Davidson", "Je Me Donne A Qui Me Plait", "Bubble gum", "Contact", "Je Reviendrais Toujours Vers Toi", "L'Appareil A Sous", "La Madrague", "Le Soleil De Ma Vie", "On Déménage", "Sidonie", "Tu Veux, Tu Veux Pas". Em 1973, com 39 anos, e depois de concluir as filmagens de “L'Histoire très Bonne et très Joyeuse de Colinot Trousse-chemise”, de Nina Companeez, abandona o cinema e retira-se. Sobrevive a um cancro da mama, e torna-se um ferverosa defensora dos direitos dos animais. Em 1986, inaugurou a Fondation Brigitte-Bardot e desenvolve várias campanhas em prol dos animais. Patrocina a série de TV francesa “S.O.S. Animaux”, entre 1989 a 1992. Vegetariana, acaba de completar 80 anos, no meio de algumas polémicas por declarações consideradas extremistas, racistas e xenófobas.


Filmografia:

1952: Le Trou Normand, de Jean Boyer; Manina, la Fille sans Voiles, de Willy Rozier; Les Dents Longues (O Ambicioso), de Daniel Gélin; 1953: Le Portrait de Son Père, de André Berthomieu; Un Acte d'Amour ou Act of Love (Um Gesto de Amor), de Anatole Litvak; Si Versailles m'était conté... (Se Versalhes Falasse), de Sacha Guitry; 1954: Tradita, de Mario Bonnard; Le Fils de Caroline Chérie (As Mulheres e o Rebelde), de Jean-Devaivre; 1955: Futures Vedettes, de Marc Allégret; Doctor at Sea (Uma Garota a Bordo), de Ralph Thomas; Les Grandes Manœuvres (As Grandes Manobras), de René Clair; La Lumière d'en Face, de Georges Lacombe; Cette Sacrée Gamine (Uma Diabo de Saias), de Michel Boisrond; 1956: Mio figlio Nerone, de Steno; En Effeuillant la Marguerite (Desfolhando a Margarida), de Marc Allégret; Et Dieu… Créa la Femme (E Deus Criou a Mulher), de Roger Vadim; La Mariée est Trop Belle (A Noiva Era de Gritos), de Pierre Gaspard-Huit; Hélène de Troie (Helena de Tróia), de Robert Wise; 1957: Une Parisienne (Uma Parisiense), de Michel Boisrond; 1958: Les Bijoutiers du Clair de Lune (Vagabundos ao Luar), de Roger Vadim; En Cas de Malheur (Um caso perdido), de Claude Autant-Lara; 1959: La Femme et le Pantin (A Mulher e o Fantoche), de Julien Duvivier; Babette s'en va-t-en Guerre (Babette vai à guerra), de Christian-Jaque; Voulez-vous danser avec moi ? (Você Quer Dançar Comigo?), de Michel Boisrond; 1960: L'Affaire d'une Nuit, de Henri Verneuil; La Vérité (A Verdade), de Henri-Georges Clouzot; Le Testament d'Orphée, ou ne me demandez pas pourquoi!, de Jean Cocteua (não creditada);1961: La Bride sur le Cou (Uma Mulher Sem Freio), de Roger Vadim; Les Amours Célèbres (Amores Célebres), episódio “Agnès Bernauer”, de Michel Boisrond; 1962: Vie Privée ()Vida Privada, de Louis Malle; Le Repos du guerrier (O Repouso do Guerreiro), de Roger Vadim; 1963: Paparazzi, de Jacques Rozier; Le Mépris (O Desprezo), de Jean-Luc Godard; Une Ravissante Idiote (Uma Encantadora Idiota), de Édouard Molinaro; 1964: Marie Soleil, de Antoine Bourseiller (não creditado); 1965: Dear Brigitte, de Henry Koster; Viva María! (Viva Maria!), de Louis Malle; 1966: Masculin féminin, de Jean-Luc Godard; 1967: À Cœur Joie (Duas Semanas em Setembro), de Serge Bourguignon; 1968: Histoires extraordinaires (Histórias Extraordinárias), episódio “William Wilson”, de Louis Malle; Shalako (Shalako), de Edward Dmytryk; 1969: Les Femmes (As Mulheres), de Jean Aurel; 1970: L'Ours et la Poupée (O Urso e a Boneca), de Michel Deville; Les Novices (As Noviças), de Guy Casaril; 1971: Boulevard du Rhum (Bulevar do Rum), de Robert Enrico; Les Pétroleuses (As Rainhas do Petróleo), de Christian-Jaque; 1973: Don Juan 73 ou si Don Juan était une Femme (Se D. Juan Fosse Mulher), de Roger Vadim; L'Histoire très Bonne et très Joyeuse de Colinot Trousse-chemise (A Vida Alegre de Colinot), de Nina Companeez.